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Diário Economico

Expresso

domingo, 3 de junho de 2007

Doar ou vender

Na última semana foi notícia um reality show que quando ouvi pela primeira vez pensei que só podia ser brincadeira e que a Endemol tinha batido no fundo. O objectivo era uma doente terminal escolher entre três concorrentes quem ficaria com o seu rim quando morresse. Mas quando comecei a ver a exposição mediática que estava a ter ponderei que talvez fosse a sério e que a estação televisiva holandesa BNN iria mesmo para a frente com o programa. Um coro de protesto se elevou, como seria de esperar, e questões morais e éticas foram apontadas aos produtores e aos directores do canal, que pareciam decididos em fazer passar a mensagem, pois o criador do canal tinha morrido de insuficiência renal sem nunca ter recebido o rim que poderia salvar a sua vida.
Acabou por não passar tudo de uma encenação e o doente terminal que iria escolher quem ficaria com o seu rim não passava de uma actriz contratada, embora os concorrentes fossem de facto doentes com insuficiência renal. O grande objectivo do programa era promover a discussão e encontrar soluções.

Os incentivos à doação de órgãos não são propriamente os mais motivadores. Desde medalhas (que seria o equivalente adulto aos prémios dados em colónias de férias para crianças…) a descontos no funeral (que já não será da responsabilidade do doador) passando por menos tempo de prisão ou como em Israel que, não pagando pelo órgão, têm ajudas de custos que vão para além das despesas efectivas, existem muitas tentativas para acabar com a escassez de órgãos para transplante.

Há cerca de um ano li um post no Freakconomics e o consequente artigo no New York Times que alterou completamente a minha visão sobre o assunto. E se fosse permitido ao mercado corrigir esta escassez, permitindo aos doadores vender os seus órgãos ainda vivos. As objecções morais são evidentes mas tentemos pensar um pouco sem o calor das emoções. A nível médico, um rim retirado de uma pessoa viva é muito melhor que um rim retirado de um cadáver. Uma pessoa pode viver uma vida plena com apenas um rim, quando este pode fazer com que uma pessoa com insuficiência renal viva. Os custos para o doador são portanto muito inferiores que o benefício para quem recebe o transplante. Existe portanto um ganho lógico e global que advém dessa transacção. No estado corrente, o ganho para o receptor é óbvio, o médico e as enfermeiras também ganham com isso, assim como o hostipal e as farmacêuticas. Só o doador tem de desempenhar a sua função de puro altruísmo sem receber nada, com o custo de ter de viver com menos um rim. Não é portanto difícil de perceber o porquê da escassez de órgãos para transplante.
Moralmente talvez ainda não estejamos preparados para este mercado. Mas quantas pessoas têm de morrer para que estejamos?

3 comentários:

Futscher disse...

Sim correcto, porém existe um efeito lateral possível: o aumento do tráfico de órgãos... Se actualmente já existe, então com este incentivo tende a aumentar ainda mais.

http://br.geocities.com/verjulgaragir/noticiaa.htm

Ainda a acrescer que quem mais iria beneficiar do mercado de órgãos seria tendencialmente as pessoas com mais possibilidades. A saúde não será algo a que todos devemos ter acesso? Deve-se decidir quem vive ou quem morre por questões monetárias?

Por detrás desta potencial melhoria, existem efeitos colaterais que necessitam de ser aprofundados.

Abraço e felicidades para o Blog!

António disse...

Grande Futscher, já não sabia nada de ti à algum tempo.

No fundo já existe um mercado de órgãos, o mercado negro. Não é uma questão linear mas penso que em termos de tráfico de órgãos vai ter o efeito completamente contrário. Algo que se pode fazer legalmente deixa de ter os preços exorbitantes que se praticam actualmente no mercado negro. E se deixa de render vai deixar de existir esse mercado paralelo.

Anónimo disse...

Por princípio, não vejo objecções, mesmo morais: é um contrato celebrado voluntariamente entre duas partes, e isso chega-me. O importante é criar informação sobre o assunto (por exemplo, explicar ao dador que, se ficar sem o rim que lhe sobra , fica sem nenhum. Sei que é um facto óbvio, mas também o são a maioria das alegadas situações de "informação imperfeita"). Mas, para não vir aqui só dizer "acho que sim", deixo uma sugestão mais fácil de implementar: porque não dar incentivos às pessoas para se inscreverem como dadoras de órgãos (para, no caso de morte súbita, os seus órgãos poderem ser recolhidos de imediato e transplantados). Algo à semelhança do que se faz com os dadores de sangue, mas que fosse de facto um benefício relevante (uma redução vitalícia de IRS parece-me bem). E, para ser justo (por oposição a igualitário), esse benefício deveria ser pago pelos beneficiários do transplante. Quid juris?